
Definição
A hemofilia é uma doença hemorrágica hereditária recessiva ligada ao cromossomo X, caracterizada pela deficiência da atividade coagulante do fator VIII (hemofilia A) ou do fator IX (hemofilia B). A prevalência estimada é de aproximadamente um caso em cada 5.000 a 10.000 nascimentos do sexo masculino para a hemofilia A e um caso em cada 30.000 a 40.000 para a hemofilia B. A hemofilia A, mais comum, corresponde a cerca de 80% dos casos.
Em 70% dos pacientes, as hemofilias são transmitidas a indivíduos do sexo masculino por mães portadoras da mutação. Nos demais casos, a doença origina-se de uma nova mutação, ocorrida na mãe ou no feto. Esses casos são chamados de esporádicos e podem ocorrer em pacientes isolados ou entre irmãos, ausentes em gerações pregressas.
Filhas de homem com hemofilia são portadoras obrigatórias. Muito raramente, a hemofilia pode ocorrer em mulheres, por união de homem hemofílico e mulher portadora. Mulheres portadoras podem também apresentar baixos níveis de fator VIII ou fator IX, evento relacionado à inativação do cromossomo X “normal”, processo conhecido como lionização.
Epidemiologia
De acordo com o Perfil das Coagulopatias Hereditárias 2016, no Brasil, 24.228 pessoas apresentavam essa condição. Entre esses indivíduos, 10.123 (41,78%) tinham hemofilia A, 1.996 (8,24%) hemofilia B, 7.811 (32,24%) doença de von Willebrand, 1.828 (7,54%) coagulopatias raras e 2.470 (10,19%) outros tipos de coagulopatias hereditárias e transtornos hemorrágicos.
Sinais e sintomas
A apresentação clínica das hemofilias A e B é semelhante, com sangramentos intra‑articulares (hemartroses), hemorragias musculares e/ou em outros tecidos ou cavidades. As hemartroses afetam mais frequentemente joelhos, tornozelos, cotovelos, ombros e quadris.
Os episódios hemorrágicos podem surgir espontaneamente ou após traumas e variam de acordo com a atividade coagulante residual do fator VIII ou IX, que classifica a hemofilia em grave (< 1% do normal), moderada (1% a 5% do normal) ou leve (5% a < 40% do normal).
Pacientes hemofílicos podem apresentar hematomas e equimoses com facilidade, coagulação inadequada mesmo em lesões leves e, em casos graves, hemorragia espontânea. Os sinais de hemorragia incluem fraqueza, hipotensão ortostática, taquicardia, taquipneia, artropatia, cefaleia, torcicolo, vômitos, letargia, irritabilidade, síndromes medulares, hematêmese, melena, sangue vivo nas fezes, dor abdominal, hematúria, cólica renal, epistaxe, sangramento da mucosa oral, hemoptise, dispneia (obstrução pelo hematoma) e síndrome compartimental.
Diagnóstico
Deve-se pensar no diagnóstico de hemofilia diante de sangramento fácil espontâneo ou após pequenos traumas, hematomas subcutâneos nos primeiros anos de vida, sangramento muscular e/ou articular em meninos acima de dois anos ou história de sangramento excessivo após procedimentos cirúrgicos ou odontológicos. A história familiar é comum, mas não obrigatória.
Frequentemente o hemograma exibe níveis de hemoglobina, hematócrito e plaquetas normais. No coagulograma, observa-se aumento do tempo de tromboplastina parcialmente ativada (TTPa) com tempo de sangramento (TS) e tempo de protrombina (TP) normais. Na doença leve ou mesmo moderada, o TTPa pode estar normal ou pouco aumentado. A confirmação é feita por meio de dosagem da atividade coagulante do fator VIII (hemofilia A) ou IX (hemofilia B).
O diagnóstico diferencial inclui outras doenças hemorrágicas, como a doença de von Willebrand. É importante lembrar que existem deficiências combinadas de fatores de coagulação, como dos fatores VIII e V ou dos fatores dependentes da vitamina K.
O teste de inibidores do fator VIII está indicado quando o sangramento não é controlado com a infusão de quantidade adequada de concentrado de fator durante o episódio de sangramento. A presença de inibidores é indicada pela falha na correção dos tempos de coagulação com a técnica de mistura, na proporção de 1:1, com plasma normal. A concentração do inibidor é titulada por meio do método de Bethesda modificado (Método Nijmegen). O resultado do teste de Bethesda modificado é considerado positivo com nível ≥ 0,6 unidades Bethesda (UB), com baixo título (≤ 5 UB) ou alto título (> 5 UB). Além de detectar a presença de inibidor, também quantifica a sua concentração. Atualmente, existe uma recomendação do Ministério da Saúde para que o teste de mistura não seja mais utilizado no diagnóstico de inibidor, pois ser um teste menos sensível.
Os exames de imagem são indicados para investigação de sangramentos agudos com base na suspeita clínica e na sua localização anatômica: tomografia computadorizada craniana sem contraste para suspeita de hemorragia intracraniana espontânea ou traumática, ressonância magnética craniana e da coluna vertebral para melhor avaliação de hemorragia espontânea ou traumática, ou na avaliação de cartilagens, sinóvias e espaços articulares, ultrassonografia para avaliação de derrames articulares agudos ou crônicos.
Tratamento
O tratamento das hemofilias inclui o manejo da hemostasia, dos episódios de sangramento, a reposição do fator deficiente e o uso de medicações adjuvantes, o tratamento de pacientes com inibidores do fator deficiente e o tratamento e reabilitação da artropatia hemofílica. A base do tratamento é a reposição do fator de coagulação deficiente, episódica ou profilática. Além disso, outros agentes hemostáticos podem ser utilizados.
Os concentrados de fatores de coagulação podem ser produzidos de duas maneiras: por fracionamento do plasma humano (hemoderivados) ou por técnicas de engenharia genética (produtos recombinantes). Os hemoderivados, produzidos a partir de plasma coletado de doadores de sangue, são hoje considerados bastante seguros, devido às novas técnicas de diagnóstico, inativação viral e purificação. Os concentrados recombinantes são desenvolvidos por técnicas de biologia molecular, que permitem obter produtos ainda mais elaborados, como fatores de longa duração na circulação e/ou mais potentes e/ou menos imunogênicos. Alguns desses novos agentes recombinantes aprovados são o alfaoctocogue, o alfamoroctocogue e o alfasimoctocogue, além do emicizumabe, um anticorpo monoclonal humanizado de aplicação semanal por via subcutânea para pacientes com hemofilia A e inibidores do fator VIII.
O acetato de desmopressina (DDAVP) é um análogo sintético do hormônio antidiurético, sem os efeitos vasopressores do hormônio natural. É utilizado no tratamento das intercorrências hemorrágicas em indivíduos com hemofilia A leve e doença de von Willebrand.
O ácido tranexâmico e o ácido épsilon‑aminocaproico são agentes antifibrinolíticos, que inibem a ativação do plasminogênio em plasmina, proteína responsável pela dissolução do coágulo sanguíneo. Os antifibrinolíticos são particularmente úteis no controle das hemorragias em mucosas, como sangramento oral, menstrual e epistaxe.
No tratamento para os pacientes com hemofilia com inibidores, a terapia recomendada é a indução de imunotolerância. Nesse modelo, é utilizado o esquema de baixas doses: 50 UI/Kg/dia (três vezes por semana) ou esquema de altas doses: 100 UI/kg/dia (diariamente), indicado mediante ausência de declínio do título de inibidor com esquema de baixas doses em pelo menos 20% (após atingido o pico máximo desde início da IT) em cada período de 6 meses após início da IT.
O acompanhamento da imunotolerância deve ser realizado pelo médico a cada 15 dias no primeiro mês de tratamento, mensalmente até o sexto mês e, a cada 2 meses até a suspensão do método terapêutico. Além disso, em casos de alta tendência hemorrágica ao início da IT, o procedimento recomendado é a profilaxia com agentes bypassing (concentrados de complexo protrombínico – CCP e de complexo protrombínico ativado – CCPA), até que o título de inibidor seja inferior a 5 UB/mL.
Bibliografia:
- Ministério da Saúde. Manual de hemofilia. 2ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2015. 80 p.
- Ministério da Saúde. Perfil das Coagulopatias Hereditárias 2016. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.
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- Ministério da Saúde. Hemofilia Congênita e Inibidor: Manual de Diagnóstico e Tratamento de Eventos Hemorrágicos. Brasília: Ministério da Saúde; 2008.
- Ministério da Saúde. Portaria Nº 478, de 16 de junho de 2014. Aprova o protocolo de uso de indução de imunotolerância para pacientes com hemofilia A e inibidor. Brasília: Diário Oficial (MS); 2014.
- Ministério da Saúde. Imunotolerância – protocolo de uso de indução de imunotolerância para pacientes com hemofilia A e inibidor. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.